O dia que comemorei meu aniversário no hospital

As dores me incomodavam na quarta-feira. Vinha com mal-estar intestinal, “reinando” algumas vezes nos últimos dois dias. Sem sucesso em me ajudar a melhorar, mudando a rotina de alimentação, na quarta eu estava pior.

O esquema na primeira visita ao hospital foi contar tudo ao médico e espera-lo fazer cara de virose. Não me entenda mal, ele me atendeu muito bem. Perguntou de tudo e acho até foi mais atencioso que o normal. O negócio é que tem certas épocas e certos sintomas que fazem os médicos esboçarem a mesma reação. Cara de virose. É como jornalista entrevistando político corrupto nas eleições e fazendo poker face. O jornalista se segura pra não rir; o médico, se segura pra não dizer o jargão que virou piada.

Ainda sem diagnóstico, me mandou para o pronto atendimento para tomar remédios para dor, mal estar e questões escatológicas. Por lá eu também faria um hemograma, na tentativa de descobrir alguma coisa.

“O negócio é que tem certas épocas e certos sintomas que fazem os médicos esboçarem a mesma reação. Cara de virose”

A sala era open space, um desses ambientes onde tudo acontece com todo mundo se olhando. Faz algum sentido para agências de publicidade e startups moderninhas, mas não consigo enxergar sentido num ambiente hospitalar. Se é numa tentativa de humanização, acho estranho. Por dois motivos.

Primeiro, porque não quero ninguém enxergando minhas caras e bocas de dor. Minha cara de doente não é legal, você sabe. Porque você também tem a sua e sabe que não é legal.

Segundo, porque numa situação escatológica como a minha o open space parece se tornar o palco principal de um festival de rock. Lá da baia dela a enfermeira responsável me perguntou pra todo mundo ouvir:

– Diarreia, seu Ricardo? Vomitou? Mal-estar?

Deu vontade de dizer que ainda não vomitei, mas perguntar isso na frente de todo mundo está me nauseando, claro.

Sentei para ser atendido e enquanto furavam o braço esquerdo para começar “o sorinho e o remedinho” um cara furava o esquerdo para o hemograma. A coisa toda foi tão emocionante que minha mãe, que me acompanhava na hora, fez até foto.

– Não é festa, mãe. Para com isso.

Enquanto eu curtia um buscopan na veia pra passar as dores, chegou um senhorzinho. Tinha lá seus sessenta e tantos e me chamou atenção quando a enfermeira trouxe pra ele o mesmo pacote farmacêutico que o meu. Ele até fez o mesmo exame.

Os pensamentos inevitáveis sobre a vida começaram, claro. Era a semana do meu aniversário de 29 anos e a gente sempre para um pouco pra pensar sobre a quantas anda essa jornada.

O senhor ao meu lado depois contou que estava realmente com sintomas realmente iguais ao meus, há alguns dias. Tinha vindo na semana anterior e acabou voltando. Que barra, pensei. Vai e vem de hospital é um saco.

Terminaram os “sorinhos e remedinhos” e voltei com o resultado dos exames para o médico dar uma olhada. Tirou a cara de virose e fez cara de infecção. Que é quase a mesma, com a pequena variação de um sorriso sutil que diz “desculpa, cara”.

Vamos para casa tomar uns remédio-rolha e fica por isso mesmo.

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“Nauseado e com um tubo de plástico enfiado no braço esquerdo, eu queria era ir pra casa e comer bolo de chocolate”

No dia seguinte eu acordo com muito, muito mais dor. Eram as dores de antes amplificadas em versão revista e atualizada. E eram cronometradas, aparecendo a cada 15 minutos e indo embora depois de me torturar por uns 2.

Era véspera de aniversário e aquilo estava começando a ficar cada vez mais complicado. A espera no hospital dessa vez levou uma hora e a médica que me atendeu, depois de analisar tudo, perguntou se eu queria ser interno.

Nunca ninguém me perguntou isso e depois eu percebi que isso fazia de mim mais adulto. Da última vez que fiquei interno em situações assim, quem decidia era a minha mãe.

– Não é que eu queira, mas deve ser o único jeito de passar a dor. A senhora acha que eu tenho o que?
– Isso é gastroenterite, infecção intestinal. Com uns dois dias interno se resolve.

Ela foi informada de que o dia seguinte era meu aniversário e de trás da máscara (por algum motivo ela estava usando na hora) deu pra ver a compaixão se instaurando.

– A gente tenta fazer os exames ainda hoje pra sair amanhã cedo, se der tudo certo.

Eram 15h30 e ou ela foi muito boazinha ou, assim como eu, não lembrou que hemograma e ultrassom devem ser feitos em jejum.

“Com jeito de menino mimado que tinha sido internado pela mãe, expliquei pra ela que o médico tinha que vir logo pra me dar alta. Eu já estava me sentindo melhor e era meu aniversário”

Passei a noite no hospital, aos cuidados da minha esposa. O que era inédito, assim como decidir se ia ficar interno ou não, assim como primeiro aniversário casado, assim como o primeiro aniversário casado e no hospital. Ela aturou comigo o ronco brutal do paciente ao lado, a chatice de me ajudar a ir ao banheiro e os procedimentos hospitalares gerais da internação. Ela que me relembrou, com bom humor pontual, o que eu havia dito na semana anterior:

– Queria fazer meu aniversário num lugar diferente este ano.

Batata.

No dia seguinte, eu ainda estava lá. Meu lado dramático não me ajudava nem um pouco. Especialmente ao saber que para fazer o exame de ultrassom, no hospital ao lado, eu teria de ir de ambulância.

Nunca tinha entrado numa dessas, ainda que tenha andado de maca algumas vezes. Entendi qual é o ponto de vista de alguém que é socorrido e definitivamente não é nada legal.

Todo o caminho precisa ser feito assim, inclusive. Nada de ir até o carro andando. O que faz você ter o olhar steadycam de um filme do Paul Thomas Anderson.

Todas as esperas de hospital, incluindo essa, me entediavam brutalmente. Não exatamente pelo fato de eu estar esperando que fosse divertido, mas por todo meu contexto. Nauseado e com um tubo de plástico enfiado no braço esquerdo, eu queria era ir pra casa e comer bolo de chocolate.

aniversariohospital2015Contei pra enfermeira-chefe do plantão que eu precisava ir embora. Com jeito de menino mimado que tinha sido internado pela mãe, expliquei pra ela que o médico tinha que vir logo pra me dar alta. Eu já estava me sentindo melhor e era meu aniversário.

– É meu aniversário, eu não tô brincando.

Ela também usava máscara, como a médica do dia interior. E nos olhos dela eu senti, de novo, a tal da compaixão. Empatia.

Depois de muita pressão e a imensa ajuda também da minha mãe e da minha irmã, o médico iria chegar em breve para olhar os exames. Numa das saídas que minha mãe estava prestes a fazer para checar porque ele ainda não tinha aparecido (estava, teoricamente, 3 horas atrasado), foi surpreendida por uma comitiva entrando no quarto.

Quando ultrapassaram a cortina que dividia o ambiente em dois, percebi que uma delas estava carregando uma bandeja. Nela tinha um bolo pequeno com uma velinha acesa e, do lado, um suco de caju e uma banana. A velinha acesa no bolinho me lembrou “A Última Crônica”, de Fernando Sabino. Fazia sentido.

A enfermeira-chefe, agora sem a máscara, chegou junto puxando os parabéns.

Achei que tivesse sido coisa da minha mãe e ensaiei uma reclamação. Ela, surpreendida, me explicou que não tinha nada a ver com aquilo, enquanto já estavam no “muitas felicidades, muitos anos de vida”.

A esposa do paciente ao lado comentava com ele “é aniversário dele hoje”.

Na minha cama, ainda com o tubinho de plástico enfiado na veia do braço esquerdo, fazendo sorriso sem jeito para uma foto e totalmente constrangido diante da situação, eu segurei o choro.

O bolo integral de banana (apropriado para minha situação, vejam só), junto a um cartãozinho de parabéns e o sorriso daquela equipe jogou meu mal humor no chão.

Tinha feito piadas cínicas a jornada inteira. Por mais que elas nunca me larguem e façam parte da minha rotina, sem dúvida também indicavam o nível de frustração no sangue diante dos últimos dias.

Naquela hora eu pensei no paciente do lado, que estava com um monte de problemas de saúde realçados e misturados por ter perdido a mãe há uma semana. Pensei naquele monte de crianças que eu já vi internadas no hospital do câncer, enquanto a gente tinha feito uma visita para alegra-las um pouco (e em todo mundo que faz isso toda semana). Naquela hora eu entendi que não fazia o menor sentido reclamar de dor de barriga. Naquela hora, inesperadamente, me senti grato por estar comemorando meu aniversário no hospital. Naquela hora, esse absurdo fazia sentido. Muito sentido.