Razão e fé investigam mistérios em True Detective

O discreto primeiro episódio de True Detective é a delimitação do seu território narrativo e conceitual. Da visão de uma câmera amadora usada para registrar um interrogatório, somos inicialmente apresentados a Rustin Cohle e Martin Hart e, a partir de suas lembranças saberemos o que Nic Pizzolatto, criador e roteirista da série, deseja contar. É nesse roteiro quase que totalmente limitado às visões pessoais dos dois detetives que conhecemos a história de um serial killer imerso numa Louisiana pintada por religiosidade pentecostal e rituais obscuros, típicos da região. A câmera amadora, entretanto, é de fato da entrevista feita por outros dois detetives que investigam o passado dos nossos protagonistas.

Obscuras e cheias de entrelinhas também são as vidas e o modo de trabalho dos dois detetives. A brilhante interpretação de Mathew McConaughey como Cohle nos introduz a um homem introspectivo, com ares de filósofo e ferido pela perda de uma filha seguida de um casamento destruído. Mesmo que texano, a personalidade analítica e intelectual de Cohle quebra o estereótipo do policial red neck sulista americano, contraponto que está justamente em seu novo parceiro, Martin. Interpretado com elegância por um Woody Harrelson com menos tiques, acompanhamos a vida de um detetive pragmático no trabalho, com alguma religiosidade cristã (aparecendo como suposto apoio às suas crises) e um casamento de problemas latentes, em família formada pela esposa e duas filhas.

“Duas cosmovisões em conflito na série: o tom existencialista de Cohle e certa hipocrisia cristã de Marty”

Por último, a delimitação do ambiente. Takes aéreos mostram imensos campos abertos do estado de Louisiana, cercados por regiões alagadas, sempre remetendo aos furações que costumam assolar a região. Os descampados, entretanto, logo são cortados pelos pequenos condados e cidades hiper-interioranas, sempre formadas por uma escola, uma igreja, um cemitério, uma floresta. É neste universo que nossa história se inicia, com a dupla de detetives sendo apresentada à morte de uma jovem prostituta, encontrada com elementos que indicam possíveis rituais ocultistas. Sem pistas do assassino, os misteriosos elementos junto ao corpo e todo o caminho da investigação mexe com duas cosmovisões em conflito: o tom existencialista de Cohle e a certa hipocrisia cristã de Marty.

Razão crítica, fé em crise

Esta fé que está presente na narrativa como personagem e através deles não é nada suave ou bela. Não é como esperança que Pizzolatto nos traz essa ética em True Detective. Além da falsa moral de Marty, da sua postura de defesa da tradição de Louisiana, também surge no roteiro a crise das caravanas evangelísticas americanas, presentes há séculos em sua cultura. Com inúmeras variações doutrinárias e sincretismos ocultos, o evangelicalismo é trazido bem mais como problema do que solução. Cohle, mais especificamente, critica sem pena a ignorância dos membros de uma igreja-tenda que eles visitam no terceiro episódio.

TrueDetective_Igreja

“Se a única coisa que mantém uma pessoa decente é a expectativa de uma recompensa divina, essa pessoa é um pedaço de merda” Rustin Cohle

Não adianta imaginar que toda essa radiografia que a série faz dos nossos personagens e da sociedade é mera contextualização – como também pode parecer sobre este texto. Ainda que True Detective possa traçar os caminhos de crimes de tom religioso em um universo de 17 anos, sua narrativa é sobre a transformação de Cohle e Marty. E é justamente aqui onde a série acerta como poucas. Ao contrário da comum construção episódica (de unidades individuais) e baseada na óbvia serialidade e atração a partir de reviravoltas sempre permeadas por histórias mais curtas, True Detective discute pedofilia, fundamentalismo cristão, ocultismo e assassinatos como a melhor ponte para teorizar sobre aquela humanidade de Louisiana – aqui representada pelos protagonistas. Racionalidade e fé estão ali, em um constante conflito que nunca é apresentado de maneira óbvia ou hipócrita, sem entregar uma narrativa rasteira ou manipuladora.

“Cohle não para enquanto não tirar suas dúvidas; Marty deseja deixar para trás as dúvidas e engolir a primeira versão dos fatos”

No primeiro episódio, Cohle é convidado por Marty a ir até sua casa para jantar e conhecer a família. É o aniversário da filha de Cohle que morreu em um acidente há alguns anos. No interrogatório onde ele relembra a situação, explica que foi até lá bêbado e tomado pela lembrança de sua perda. O conflito entre os dois detetives, parceiros, aparece logo ali: a passionalidade, a praticidade e a busca de Marty pelas boas aparências contra o honesto existencialismo de Cohle e sua falta de tato em trazer à mesa assuntos inconvenientes. Cohle vai afundo em suas dores; Marty esconde as crises do casamento na cama da amante; Cohle é incansável em suas buscas, não para enquanto não tirar suas dúvidas; Marty deseja deixar para trás as dúvidas e engolir a primeira versão dos fatos.

Nossos detetives vivem uma jornada em True Dective de aprendizado nos 8 episódios e seus 17 anos de história. Um infográfico de um excelente fan site nos mostra a linha do tempo sem as elipses e flashbacks da narrativa, mas nela há apenas os índices de enredo para as transformações da dupla. As mudanças vividas não cabem na tabela de Excel do fã transmidiático.

É evidente que a transformação mais certeira acontece no episódio final. Sem trazer informações que comprometam a sua experiência de espectador, é preciso dizer que nosso storyteller Nic Pizzolatto surpreende à medida em que nos entrega uma transformação ampla nos discursos dos nossos protagonistas. Atordoados pela realidade e amplitude de suas descobertas enquanto detetives, Cohle e Marty se redescobrem. Sem ignorar as cicatrizes que ficaram ao longo dos 17 anos desta jornada, os detetives se entendem como cúmplices – não de crimes, mas da beleza de se transformar por completo. A câmera amadora dos investigadores (sempre perguntando “você pode me falar um pouco mais sobre ele?”) jamais captará este processo.

True Detective

Exibida na HBO
[rating=5]


ricardo


Ricardo Oliveira
é jornalista, mestre em comunicação, nerd, blogueiro no Diversitá e megalomaníaco por produção de conteúdo. Faz parte dos projetos musicais Mais Que Apenas Som e Message in a Bottle, tenta filmar seu primeiro curta de ficção e nas “horas vagas” edita o *catavento.