Quando um filme consegue captar a realidade – mas aquela real mesmo, do dia-a-dia – ele incomoda, justamente por que não se tem como atribuir papéis; todo mundo simplesmente é.

Antes de mais nada cumpre esclarecer que o filme é tecnicamente primoroso, com atuações excelentes, até mesmo dignas de uma estatueta no Sundance Festival. E essa dedicação toda é tamanha que a obra de Anna Muylaert não precisa que ela diga “- Parla!”, pois esse ‘Davi’ tem voz própria.

O filme tem uma intenção clara e uma agenda muito bem definida: explora os contrastes sociais onde uma família rica entra em conflito com uma família pobre. O discurso tem sua influência marxista e se não fosse o zelo da direção em captar aquilo que é, e não o que se percebe, reduziria boa parte de seu brilho.

Em “Que horas ela volta?” essa captura da realidade é excepcional. É tudo tão cru e palpável que a audiência consegue interpretar a situação à sua maneira. A mensagem está lá, mas não é impregnada no filme, é solta – quase como um apêndice. Muylaert diz:
“Tá vendo isso? Eis o que penso:”

Cabe ao espectador concordar com a cineasta, ou simplesmente tirar suas próprias conclusões daquilo vê. Em uma postura extremamente rara no cinema, somos presenteados não com um discurso, mas um diálogo. Um real e genuíno convite à reflexão.

E é refletindo sobre essa história que divaga-se adiante.

DOMÉSTICA, SECRETÁRIA, EMPREGADA…

Essa pintura incômoda que surge da realidade de muitas famílias brasileiras rendeu até reportagem no Fantástico, com ilustração de alguns casos e relatos.

543960-970x600-1Talvez a única coisa realmente “preto no branco” no filme seja o fatídico conjunto de xícaras e garrafa térmicas comprados por Val e tudo aquilo que ele representa.

Val é uma mãe por natureza, talvez o título em inglês – The Second Mother – dê uma pista melhor da essência da personagem. Deixando sua filha para trás, ela partiu para São Paulo a fim de conseguir uma melhor remuneração e a mantença de sua criança. O retrato clássico da tão comum diáspora nordestina que ocorreu nos meados do século XX.

O serviço doméstico no Brasil sempre foi historicamente subvalorizado. Digo isso como estudante de Direito que ouvia essa verdade desde cedo durante o curso. “As empregadas domésticas posuem menos direitos trabalhistas que todas as demais classes justamente por que todo os que legislam têm pelo menos uma em casa” – ouvi de um professor.

– Felizmente o quadro tem mudado com as recentes reformas trabalhistas e extensão de direitos básicos como horas extras, FGTS e adicional de viagem para a categoria –

Não raro, a empregada doméstica trocava o serviço em tempo integral pela moradia + alimentação e um salário que se encaixava mais na categoria da famosa “ajudinha”. Carregados dessa bagagem, não é difícil entender porque essa relação sempre foi percebida como sinônimo de exploração.

“COMO SE FOSSE DA FAMÍLIA”

A dinâmica mostrada é simples: empregada doméstica que mora na casa dos patrões, muito embora possuísse condições de morar só (como a chegada de sua filha Jéssica comprova), passa a experimentar conflitos entre sua vida pessoal e profissional.

Nosso histórico escravocrata (que não terminou na lei Áurea) nos faz automaticamente deduzir que os patrões é que prendem Val à residência. A postura de subserviência, muito embora aceita e explorada pelos mesmos, não parte de uma atitude impositiva, mas sim da própria Val.

Bárbara e Carlos assumem o papel de patrões e nada mais. Sem apego emocional, eles encaram as tarefas realizadas por sua empregada como aquilo que justamente são: trabalho. Em nenhum instante eles intentam uma aproximação maior, e isso não necessariamente os transforma em vilões.

Val sofre por ser humana, por enxergar seu trabalho como algo a mais, ela está emocionalmente investida naquilo e isso fica evidente através de sua relação com Fabinho – seu segundo filho.

E nisso não há como se distribuir papéis de certo ou errado. A dinâmica é muito volátil e de difícil desenrolar.  A frase dita pela patroa configura bem todo esse problema: “Val, você é como se fosse da família.”

“Como se fosse” é diferente de “ser”, é algo embaçado e de difícil definição. Anos de convivência com uma pessoa dentro de seu local mais íntimo – sua casa – automaticamente criam um laço emocional, todavia ainda permanecem obrigações a se fazer e desempenhar.

– O patrão possui o dever de se envolver emocionalmente com um funcionário?

A resposta é claramente não, mas é difícil imaginar alguém imune ao afeto oriundo do convívio diário – é algo que concebemos como uma consequência natural.

Talvez o problema seja outro: a dificuldade em se separar local de trabalho de convívio familiar.

NADA É DEFINIDO – TODA A RELAÇÃO É NEBULOSA

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É paradoxal o incômodo que nos causa o fato de Val e sua filha serem presença indesejada na piscina por sua patroa. Por um lado é perfeitamente aceitável que um empregado não tenha acesso a todos os ambientes de seu local de trabalho, por outro é de partir o coração que a pessoa que toma conta de seu filho não possa acompanhá-lo na piscina.

E a dificuldade reside aí: no âmbito do emprego doméstico, empregado e hóspede se confundem. Se um eletricista resolver mergulhar na piscina para aliviar o calor, a estranheza é quase unânime – sua estada lá é curta, não há tempo hábil para que a figura de prestador de serviço se confunda com a de convidado.

O próprio “quartinho da empregada” é um elemento bem explorado no filme, mas que também é bastante turvo. Numa perspectiva de hóspede o quarto é horrível, mas sob uma óptica de emprego, é uma facilidade que nenhum outro local de trabalho possui.

Obviamente que o “quartinho” é um resquício da antiga senzala; mantém-se o empregado perto da casa, para o serviço 24h. Porém na história (e cada vez mais comum atualmente) não é o que acontece.
Val dorme lá mais por facilidade, pois não encontra empecilhos ou resistência dos patrões quando resolve procurar um lugar separado para morar. Sua dependência com o local é muito mais afetiva.

Não é uma relação “preto no branco”, e aqui voltamos ao conjunto de xícaras. Val deposita uma enorme carga afetiva neles, em uma analogia ao tanto de amor que lança para aquela família. Porém seu presente é tratado como apenas mais um dentre vários; “esse conjunto vai pro Guarujá” – diz Bárbara, repreendendo Val que queria servi-lo no aniversário.

É uma atitude extramente grosseira em termos afetivos (diminuir um presente dado com tanto carinho), porém perfeitamente cabível no universo patrão-empregado (querer que o café seja servido de uma determinada maneira).

Val entrega mais do que lhe é pedido por Bárbara e Carlos. Ela dá carinho, afeto e cuidado, enquanto seus patrões apenas exigem serviço.

A crítica aí é universal, e não social. Ser sensível a quem nos rodeia vale para todas as nossas relações pessoais: empregadas, porteiros, avós e colegas.

Não adianta procurar vilões* nessa história, não serão encontrados. O que existe é uma dissonância entre o que patrões e empregada esperam um do outro.

* os avanços de carlos sobre jéssica talvez sejam um ponto fora da curva nessa afirmação.

UMA MÃE ANTES DE TUDO

*spoilers no trecho a seguir*

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Fabinho é o único que enxerga Val como família, uma mãe mais mãe que a sua própria – para tristeza dessa última.

Val deixa sua terra e fica órfã de filha, e é no garoto que preenche essa lacuna. É a maternidade – e não um fator econômico – que a mantém ligada àquela casa, dormindo lá, incapaz de se separar.

Isso fica claro na facilidade com que ela se desliga da residência após a ida de Fabinho e a chegada de Jéssica. Ela perde seu garoto, mas ganha de volta a filha e um neto.

Val é, antes de tudo, uma mãe – e isso dita suas ações.

*fim dos spoilers*


JESUS, LAVA-PÉS E QUANDO CONFUNDIMOS SOBERBA POR COMPAIXÃO

Jesus lava os pés dos apóstolos, por Dirck van Baburen

Há cerca de 8 anos participei em minha igreja de uma “cerimônia de lava-pés”, cujo nome já é bastante autoexplicativo e baseia-se numa passagem do Evangelho de João, capítulo 13:3-16.

Eu já tinha lido o trecho, entendido, mas quando meus amigos e conhecidos vieram lavar meu pé foi extremamente incômodo e ao final eu me encontrava em prantos.

Não se engane, nosso impulso natural é reagir igual a Pedro: “Não; nunca lavarás os meus pés!”, e a reposta de Cristo será sempre a mesma: “Se eu não lavar os seus pés, tu não terás parte comigo.”

Isso por que a reação de Pedro não era de compaixão, mas de soberba. Ver alguém que era maior que ele lavando os seus pés colocava em cheque tudo aquilo que ele pensava de si mesmo. Ele não podia mais olhar para quem lavava seu pé e considerá-lo como alguém inferior, pois o próprio JESUS estava fazendo isso.

Quando vi meu pastor (alguém que admiro) lavando meus pés, eu não conseguia mais enxergar alguém como menor que eu, pois alguém que eu pensava ser maior estava lavando meu pé – e é essa humildade que Cristo quer passar.

Quando achamos absurdo alguém lavar o nosso pé, é simplesmente por que não queremos lavar o pé de ninguém.

Ser servido sempre incomoda, ter meu sapato engraxado foi uma das experiências mais agonizantes que já passei. Isso por que minha reação natural é sentir-me superior àquela pessoa, e combater esse sentimento é sempre difícil. Não há inimigo como o ego.

Ter alguém forrando sua cama, fazendo seu café ou arrumando sua bagunça não faz dessa pessoa menor que você. Ela não é digna de pena. No máximo, você é.

Muitos do que assistiram “Que horas ela volta?” foram incomodados com a situação de Val. E buscavam justificar aquilo tudo atribuindo o papel de vilão a seus patrões. Assim eles conseguiam transferir para a tela toda a culpa e altivez de si mesmos.

Quando eu não quero me ver como alguém que lava privada dos outros ou que recolhe o cocô do cachorro de alguém – por achar isso degradante – automaticamente taxo aqueles que se beneficiam de tal serviço como exploradores. Esqueço que, com isso, estou diminuindo todos aqueles que realizam tal função sem o menor constrangimento.

SE NÃO ENXERGARMOS ‘VAL’ COMO ALGUÉM EXPLORADA, LOGO ELA É IGUAL À MIM. E ISSO NINGUÉM PARECE QUERER.

Nem mesmo sua filha Jéssica…