Por que acreditamos que a vítima também é culpada?

Mais de uma vez, parentes meus foram assaltados em saídas de banco ou chegando em casa após o saque de uma quantia alta. Logo depois do choque inicial com a situação, em todos os casos eu me vi fazendo um julgamento rápido na mente: “Mas quem sai na rua com essa quantia, né?”. De alguma forma eu acreditava que a vítima do assalto também é culpada. 

Esse tipo de pensamento é extremamente comum e está longe de ser isolado. Se alguém tem câncer, a gente tenta entender as causas e se o motivo passar brevemente por alguma responsabilidade da vítima, parece que a gravidade da situação diminui em detrimento daquele fato anterior.

A psicologia social chama esse processo de vitimização secundária. É aquela culpa que nós atribuímos à vítima após o fato primário (sofre de uma doença, foi assaltado, etc). Esse processo, no geral, parte do princípio de que somos responsáveis pelo que de ruim acontece conosco, ou talvez, tenhamos um histórico familiar que favoreça essa lógica.

O conceito mais primário de “vítima” parece estar totalmente em choque com essa ideia, já que tem como significado primordial a inocência. A palavra tem sua etimologia ligada aos ritos antigos de sacrifício de animais aos deuses. Escolhido sem motivo de culpa, o animal inocente (a “vítima”) era muitas vezes selecionada até por sua pureza (vide a tradição judaica de sacrifício de um animal perfeito em busca de purificação pessoal).

No direito, inclusive, a lógica permanece. Vítima é vítima – se ela esqueceu o portão de casa aberto na rua perigosa em que mora e foi assaltada, ela continua não sendo responsável pelo assalto que aconteceu.

A vítima é culpada no “mundo justo”

Essa lógica (que é soa esquisita quando detalhada, mas extremamente comum em nosso cotidiano) é tratada pela psicologia social como a Crença do Mundo Justo (CMJ). A hipótese, desenvolvida pelo pesquisador americano Melvin Lerner durante os anos 1980, consiste em acreditar que “existe uma ligação entre o que as pessoas fazem e os resultados que obtém, aceitando assim que as pessoas têm o que merecem e merecem o que têm” (Fonte: Modesto, 2014).

1. Se você é pobre, está nessa condição porque fez por merecer.

2. Se tem câncer, deve ter guardado raiva.

3. Se foi assaltado é porque andou por onde não devia.

4. Se é vítima de bullying na escola é porque não interage com a turma e só gosta de coisas estranhas

5. Se foi estuprada é porque sempre andava de roupas curtas.

 

“A Crença no Mundo Justo afirma que existe uma ligação entre o que as pessoas fazem e os resultados que obtém, aceitando assim que as pessoas têm o que merecem e merecem o que têm”

Tal lógica foi demonstrada com experimentos muito básicos feitos por Lerner e que vêm sendo replicados e evoluídos desde então. O mais elementar de todos trazia o seguinte cenário:

Dois homens são convidados a fazer um trabalho. Aos dois é informado que devem trabalhar dedicadamente, mas que somente um será pago, por questões financeiras. Porém, isso se dará por sorteio, logo, não têm como saber quem será o contemplado.

Um grupo de pessoas assiste a essa situação e a esse grupo é informado exatamente quem receberá o salário, mesmo antes do trabalho começar.

Ao final do teste, mesmo considerando que os trabalhadores não sabiam quem seria pago e que se dedicaram igualmente, a maior parte das pessoas considerou que aquele que ganhou, trabalhou mais e mereceu o pagamento. Ou seja, quem não ganhou realmente não fez por merecer, mesmo tendo feito exatamente a mesma coisa que seu “concorrente” em um resultado manipulado.

Inúmeros estudos seguintes aos de Lerner consolidam a ideia de que quem tem uma Crença no Mundo Justo mais forte, tende a gerar mais vitimização secundária. É possível encontrar trabalhos acadêmicos no Brasil ou em Portugal que demonstram experimentos que revelam o quanto isso é real em nosso mundo. Como descrito no início do texto, é por conta dessa lógica da crença em um mundo justo, equilibrado (e não caótico) que acreditamos que quem foi assaltado é, de alguma forma, responsável pela situação.

Não é preciso uma dedicação acadêmica muito aprofundada, entretanto, para comprovar a hipótese. Na polêmica pesquisa do IPEA em 2014, mesmo com a correção de um dado incorreto publicado, ainda era assustadora a quantidade de pessoas que acreditam que uma mulher que usa roupas que expõem seu corpo merece ser atacada. Um total de 26% concorda total ou parcialmente com esta ideia.

“Mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas? (Em %)” 


(Pesquisa IPEA 2014)

Que pecado essa vítima cometeu?

A Crença do Mundo Justo está longe de ser algo recente. É possível encontrar as raízes de suas ideias, por exemplo, na ideia de karma do hinduísmo. No judaísmo, inclusive, tão influente na cultura ocidental, é algo que se fez presente entre os discípulos de Jesus.

No 9º capítulo do Evangelho de João é relatado o caso de um cego curado por Jesus. A pergunta que seus discípulos fazem quando passam por ele é: “quem pecou para que ele seja cego? Seus pais ou ele?”. A resposta de Cristo não apenas mostra sua empatia e compaixão, mas quebra a teologia equivocada que estava ali: nem dele, nem de seus pais.

justica

“Quando julgamos que alguém assaltado, doente ou violentado é responsável em parte pela situação, estamos confortando o nosso cérebro com o medo do futuro incerto e caótico que nos cerca. Estamos fugindo da realidade de que nosso mundo é completamente injusto”

 

O propósito, segundo Jesus, era o milagre que estava para acontecer (não como causa e consequência, mas como se estivesse anunciando o que iria fazer). E o não-dito também é revelador: não existe a herança de um pecado, como os judeus chegavam a acreditar. Um provérbio (não do livro de Provérbios) judaico dizia que “os pais comeram as uvas ainda verdes e os filhos ficaram com os dentes embotados” (Ezequiel 18:1-4).

A verdade é que consciente ou inconscientemente, acreditar no Mundo Justo é se sentir confortável com esse “equilíbrio” que me leva a tentar ser bom – porque o mal não acontece a quem é bom (ou a negatividade não chega a quem é positivo). Os pesquisadores tratam essa crença como uma ilusão, tal como é lembrado por São Paulo (“não há um justo, um justo sequer”) ou São João (“o mundo jaz no maligno”). É como afirmar: “se nada de mal acontece comigo é porque eu sou bom”.

Quando julgamos que alguém assaltado, doente ou violentado é responsável em parte pela situação, estamos confortando o nosso cérebro com o medo do futuro incerto e caótico que nos cerca. Estamos fugindo da realidade de que nosso mundo é completamente injusto. E o “nosso mundo” é feito por nós mesmos. Somos injustos diariamente: do troco errado que não devolvemos à tentativa de responsabilizar a vítima de um estupro coletivo “porque se ela estivesse em casa isso não teria acontecido”.

Não é  machismo

Essa cosmovisão, que parece ser o sub-extrato da mistura entre “O Segredo”, judaísmo deturpado e hinduísmo, não anula todos os outros fatores que nos fazem responsabilizar a vítima em casos de estupro. Pelo contrário, tudo isso atenua nossa cultura machista e, por consequência, a cultura do estupro – ambas com necessidade urgente de serem combatidas.

O machismo arraigado em nossa sociedade (das piadas em casa a cantadas na balada), a espetacularização da sensualidade (das propagandas de cerveja ao mundo da moda), o consumo desenfreado da pornografia (que objetifica a mulher e o homem, mas especialmente a mulher), e tantos outros fatores são extremamente potencializados graças à Crença do Mundo Justo e sua vitimização secundária. Não é apenas por causa do machismo que responsabilizamos uma vítima de violência sexual, mas porque realmente achamos que “as pessoas colhem o que plantam”.

 

E, na verdade, o mundo não é nada, nada, justo.

A sabedoria acidamente melancólica do sábio Salomão já avisou:

“Tudo pode acontecer. Há o mesmo destino para todos – justos e injustos, bons e maus, feios e bonitos, gente de fé e descrentes. É revoltante – e nada pode ser pior que isto neste mundo – que todos tenham o mesmo destino. Por isso, tanta gente se entrega ao mal. Por isso, tem tanta gente que enlouquece por toda parte. A vida conduz à morte. Essa é a verdade”.

Assim, podemos entender que as pragas também chegam nas plantações de quem se dedicou meses para colher algo bom: abusos sexuais acontecem dentro da igreja (como mostra Spotlight ou o projeto Redomas), dentro das comunidades mais “impecáveis” (como mostra A Caça ou noticiário), na escola ou, até mesmo, em casa.

E se para o mal individual, nos resta a graça redentora (que não vem pelas boas obras), para o mal que aflige o outro, o mundo injusto, nos cabe o desejo e os gestos de justiça: “bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão fartos” (Mt 6:6). Só nos resta, enfim, a empatia de se colocar no lugar do outro e pensar: a culpa não é da vítima.