Marina, Malafaia e Antônio Conselheiro

“Para obter a verdadeira felicidade, é necessário que se faça a Sua divina vontade, combatendo o demônio que quer acabar com a fé da igreja.” A frase (que contém exatos 139 caracteres) poderia muito bem ter sido um dos infames tweets de Silas Malafaia, mas não foi, é atribuída à Antônio Conselheiro.
O idealizador de Canudos proferiu a frase acima em relação ao instituto do casamento civil, que ele considerava uma intromissão do Estado nas matérias da Igreja, um “desagregador de costumes” – também criticava a forma Republicana de governo, pois esta representaria a luta do poder humano contra o poder divino. Morreu em 1897, época em que tais ideias já sofriam críticas por serem inadequadas.

querem continuar a usar da força

Quase 120 anos depois alguns auto-proclamados defensores da Igreja e da “família cristã” voltam a se digladiar com o prumo adotado pelo Estado. Talvez refletindo toda inocuidade de seus discursos, uma verdadeira impotência em transmitir os ensinamentos cristãos através do amor (como se existisse outra maneira), querem continuar a usar da força.
E digo continuar pois não é nenhuma novidade esse sincretismo igreja-estado, já que o crime de adultério somente foi oficialmente revogado em março de 2005 (!), apesar de já estar em desuso há algum tempo antes disso, a “pulada de cerca” era punível com a prisão do cônjuge infiel.

Basta ler rapidamente sobre a evolução histórica do adultério no Brasil para ver que seus defensores julgavam importante a manutenção da conduta como crime, pois seria necessário para o bem da ordem social e configuraria um dever do Estado proteger a família.

Curioso notar que o mesmo raciocínio se aplica à questão do casamento gay. E apenas comparo as matérias (que são claramente distintas, já que o adultério é uma falha de caráter) pelo simples fato de serem uma área estritamente privada em que se exigia e/ou exige a atuação do Estado. A única coisa que os une talvez seja sua classificação como pecado sob a óptica cristã. E é justamente essa característica comum que tornou a campanha de Marina Silva tão espinhosa nesses últimos dias:

primeira versão
primeira versão do programa de governo de Marina

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Isso porque os dois primeiros pontos foram alterados e passaram a contar com a seguinte redação:

  • Garantir os direitos oriundos da união civil entre pessoas do
    mesmo sexo;
  • Aprovado no Congresso Nacional o Projeto de Lei da Identidade
    de Gênero Brasileira – conhecida como a Lei João W.
    Nery – que regulamenta o direito ao reconhecimento da
    identidade de gênero das “pessoas trans”, com base no modo
    como se sentem e veem, dispensar a morosa autorização
    judicial, os laudos médicos e psicológicos, as cirurgias e as
    hormonioterapias.

Independente se a mudança foi significativa, ou não, se ocorreu em virtude das ameaças de Malafaia, ou não, é inegável que o meio evangélico exerceu e exerce cada vez mais uma enorme pressão contrária a tais assuntos. E tal fato que é simplesmente preocupante.

Nós – e aqui me incluo, pois como igreja somos muitas vezes coniventes com tais aberrações – alçamos o PL 122 (que tentei desmistificar aqui em outro artigo) e a união civil homossexual como os grandes nêmesis cristãos da atualidade.

Queremos estatizar as condutas cristãs,
retornar às leis Mosaicas

Queremos estatizar as condutas cristãs, retornar às leis Mosaicas ou ao governo da Igreja Católica Apóstolica Romana (nossa igreja, até então). Roma que, por sinal, parece não nos ter ensinado nada. Oprimiu e subjugou nos coliseus por nos ver como ameaças ao Estado Romano (ou à “família tradicional romana”, como queira). Tempos depois o Império abraçou as “convicções cristãs” e fundiu-se com a Igreja, o que resultou na queima de mulheres e as sangrentas Cruzadas.

Recentemente temos o já citado caso do crime de adultério que, após ser descriminalizado, não estimulou as pessoas a adulterarem mais ou menos.

Adultério, por sinal, que não impede que as pessoas se divorciem e se casem de novo, e de novo, e de novo, (ad eternum) sem nenhuma manifestação ou piquete cristão pedindo a proibição do casamento civil dos divorciados; ou do casamento civil obrigatório para quem transa ainda solteiro. Também não se vê crítica ao casamento civil de ateus, umbandistas, islâmicos e hindus, todos estes vivendo sem a benção do Deus cristão. E é bom que continue assim! A expressão aqui é: comportamento contraditório.

O casamento civil é, como o nome já indica, um instituo do Direito Civil – ou seja – da lei. Embora esta última não especifique diretamente qual seja sua natureza, pode-se dizer (para fins de evitar um blablablá jurídico) que é aquilo popularmente conhecido como um “contrato”. Ele irá servir para atestar perante a sociedade e o Estado que aquelas duas pessoas firmaram um compromisso público de viverem juntas.

Seria como aceitar o batismo de uma criança na religião hindu, mas ser contrário a seu registro

Quando muitos cristãos dizem não se opor a que dois homossexuais vivam juntos, mas que são contrários a que eles se casem, demonstram uma total incoerência e profundo desconhecimento do que falam. Não faz sentido ser oposto algo que apenas oficializa a existência daquilo que não se é contra. Seria como aceitar o batismo de uma criança na religião hindu, mas contrário a seu registro civil.

É, inclusive, uma briga já perdida, tendo em vista que o Judiciário (que, felizmente, não se pauta por índices de aprovação eleitoral) já se manifestou favorável ao reconhecimento do casamento civil de pessoas do mesmo sexo, tendo o Conselho Nacional de Justiça já emitido resolução em que cartórios de todo o Brasil não poderão recusar a celebração de casamentos civis de casais do mesmo sexo ou deixar de converter em casamento a união estável homoafetiva. O que falta agora é apenas uma lei para formalizar essa conquista social, e que ainda assim espezinhamos e choramingamos contra.

O que me garante a possibilidade de ir ao meu local de culto preferido, entoar meus louvores e realizar minhas orações é justamente o convívio democrático e pacífico. Um estado ser laico, como é o caso do Brasil, é justamente garantir que não tomará suas decisões como base a favorer religião ou crença específica, mas sim o convívio de todos no geral. Destruir essa laicidade é, ates de tudo, um tiro no pé.

E no fim do dia Marina tenta lavar as mãos como Pilatos, Malafaia grita como Caifás e nós seguimos com as escolhas erradas: buscamos o Estado-Igreja de Antônio Conselheiro, mas não queremos uma sociedade que abriga e acolhe ― rejeitamos Canudos.