Lampejos divinos: por descobertas de fé fora da igreja

[dropcap1]S[/dropcap1]e de fato aprendemos que estamos sobre o mesmo chão ou sob o mesmo céu, como cantam Palavrantiga e Lenine, precisamos também de novos olhos – ou melhor, ouvidos; se já entendemos que nosso conceito de “separados” (santos) tem a ver com a renovação da mente diante do sistema-mundo que vivemos, sinto que ainda nos falta descobrir um detalhe essencial.

O escritor holandês e cristão Hans Rookmaker (1922-1977) nos lembra uma dessas obviedades que costumamos esquecer: somos seres culturais. Como cristãos, até podemos viver uma subcultura, ainda que não devêssemos. Temos nossos hábitos, costumes e gostos, mas deveríamos transitar (provando e temperando) no que existe ao nosso redor e não nos distanciarmos pouco a pouco até a articulação de um gueto gospel.

Com esse terreno definido, fica a proposição: precisamos de novos ouvidos musicais. O upgrade perceptivo precisa de uma nova pretensão contemplativa e, ao mesmo tempo, crítica.

Em primeiro lugar, falta ao cristão brasileiro a descoberta constante das descobertas celestiais em toda arte – seja para a percepção dos clamores de uma geração ou mesmo de uma fé turva nas letras de gente que nem pisa em igreja.

Ficamos viciados no modelo musical participativo e de exaltação dos momentos de louvor das nossas igrejas. Sim, ele é belo e reflete não somente um princípio bíblico (“louvai ao Senhor todos os povos”), mas também os diferentes anseios do nosso coração (ser ouvido, declarar nosso amor, celebrar nossa salvação). O modelo musical eclesiástico e congregacional jamais acabará – nem deve. Acontece que ele não é tudo, ainda que alguns preguem até que só deveríamos ouvir canções feitas por “ungidos do Senhor”.

[quote_right]”Ficamos viciados no modelo musical participativo e de exaltação dos momentos de louvor das nossas igrejas”[/quote_right]Perdemos (ou sequer construímos) o hábito contemplativo da arte em nossa subcultura cristã. Temos sempre de participar – e assim, cantamos mais do que ouvimos e pensamos. Porém, produzida ou não por artistas cristãos, toda arte precisa ser contemplada, sentida e, aos que se interessam, vivida. A revista americana Christianity Today sempre contou com uma coluna em seu site que me ajudou a abrir os olhos, era a “Lampejos Divinos”. Nela, os críticos de arte da revista descobriam o cristianismo perdido ou criticado em discos de bandas de rock como Arcade Fire (“Neon Bible”) ou em filmes da Pixar. A proposta era simples: é possível encontrar clamores, relances de fé ou ausência dela na arte.

Desenvolvi o hábito e hoje não consigo mais me desvencilhar. Se começa a tocar no player do computador o novo disco do cantor americano John Mayer (“Born and Raised”, 2012), a atenção se volta rapidamente para os versos de “Shadow Days”. Eles falam sobre resiliência e a passagem por dias sombrios, mas descoberta de como superá-los. O carioca Marcelo Camelo canta que já não tem medo do mundo, pois é filho da eternidade – em “Vermelho” do disco “Toque Dela”.

Já os britânicos do Mumford & Sons, longe de se declararem uma banda cristã (sem negar as raízes do vocalista, filho de um pastor da Vineyard), cantam sem medo: “Então mude meus passos e tenha compaixão de mim; Você me perdoou, e eu não esquecerei disto (…) Eu esperarei por Ti”. Referências parecidas poderão ser facilmente encontradas nos tios musicais da banda: Bob Dylan, Bruce Springsteen ou Johnny Cash.

[quote_left]Como canta Lenine, “como é que faz pra sair da ilha? Pela ponte, pela ponte!”[/quote_left]Da mesma forma, em cenário artístico de raiz cristã, poderemos encontrar contextos mais contemplativos ou “rockeiros” (no sentido de contra-subcultura ou contestador), não necessariamente ligados à adoração musical eclesiástica. Bandas como Tanlan, Palavrantiga ou Crombie parecem querer deixar o isolamento da subcultura e dialogar com quem não entenda nada do hermetismo evangélico. Como canta Lenine, “como é que faz pra sair da ilha? Pela ponte, pela ponte!”.

Às pontes criadas para contemplação, porém, não deverá faltar o olhar crítico. Nem tudo na playlist merece o repeat (parafraseando o Paulo de 1ª Coríntios 6:12). Nessa conta, caro leitor, você poderá colocar o forró e o samba brasileiros, sem medo do estilo musical ter culpa num cartório celestial. A dúvida é se valerá a pena o “dois-pra-lá-dois-pra-cá” ao som de canções que colocam, por exemplo, a mulher como objeto de consumo masculino numa esfera sexual.

O sal cristão volta à mesa e deverá permear todo consumo de arte. Com ele descobriremos que, em todas as esferas (eclesiástica, meditacional, contemplativa) a missão de ser candeia e tempero continua – sempre haverá o que sentir, mas também o que criticar.

De maneira saudável, o exercício da contemplação, do encontro dos lampejos divinos e da crítica nos fará consumidores de arte mais completos. Aos artistas, sobrará inspiração. Ao Criador de toda arte, sobrarão sorrisos: sua criação, pouco a pouco, se volta e anseia por Ele.

Originalmente publicado na Revista da Cidade Viva.

ricardo
Ricardo Oliveira
é jornalista, mestre em comunicação, nerd, blogueiro no Diversitá e megalomaníaco por produção de conteúdo. Faz parte dos projetos musicais Mais Que Apenas Som e Message in a Bottle, tenta filmar seu primeiro curta de ficção e nas “horas vagas” edita o *catavento.